“A Questão de uma Weltanschauung” S.
Freud – Conferência XXXV – em: Novas Conferências Introdutórias sobre
Psicanálise, (1933 [1932]), Vol. XXII.
No alemão corrente, uma Weltanschauung é
o que chamamos na língua portuguesa de “visão de mundo”, a qual cada um pode
ter a sua e não encerra uma verdade em si. No entanto, Freud dota essa palavra
de um significado especial, justificando que é um conceito especificamente
alemão de difícil tradução. Em sua opinião,
“a Weltanschauung” é uma construção intelectual que soluciona todos os problemas de nossa
existência, uniformemente, com base em uma hipótese superior dominante, a qual,
por conseguinte, não deixa nenhuma pergunta sem resposta e na qual tudo o que
nos interessa encontra um lugar fixo (FREUD, 1933, p.155).
Freud diz que, sendo a psicanálise
uma ciência especializada do ramo da psicologia, ela é incapaz de construir por
si mesma uma Weltanschauung, e desse modo, adere a Weltanschauung científica.
Esta por sua vez, recebeu a importante contribuição da psicanálise, que
estendeu a pesquisa à área mental. Mas, mesmo assim, a Weltanschauung científica,
“dificilmente merece um nome tão grandiloquente, pois não é capaz de abranger
tudo, é muito incompleta...” (p. 177).
Embora aponte as fragilidades de
uma Weltanschauung científica, Freud a defenderá, em
oposição a outros campos como: a arte, a filosofia, e principalmente a
religião, justificando que a Weltanschauung científica trata
de questões da esfera do conhecimento, enquanto as outras da ilusão. Para o
autor, a arte é inócua e benéfica e não procura ser mais do que uma ilusão; a
filosofia não se opõe à ciência, trabalha inclusive com os mesmos métodos, mas
também é uma ilusão na medida em que acredita ser capaz de explicar o universo
e aceita como fontes de conhecimento, a intuição; já a religião tem um poder
imenso e em períodos anteriores construiu uma Weltanschauung coerente e
auto-suficiente num grau sem precedentes e que, embora abalada, persiste na
atualidade. Ela é a única capaz de rivalizar como uma Weltanschauung científica,
pois oferece aos seres humanos informações a respeito da origem e da existência
do universo, assegura-lhes proteção e felicidade nos altos e baixos da vida e
dirige seus pensamentos e ações a partir de preceitos impostos com autoridade.
Com isso preenche três funções:
·
Satisfaz a sede de conhecimento do homem;
·
Acalma o medo que o homem sente em relação aos perigos e vicissitudes da
vida;
·
Estabelece preceitos, proibições e restrições.
Freud faz uma comparação das funções que
a religião preenche com as experiências infantis. Lembrando que o Deus-criador
é abertamente chamado de ‘pai,’ diz que:
“A mesma pessoa, à qual a criança
deveu sua existência, o pai (ou, mais corretamente, sem dúvida, a instância
parental composto do pai e da mãe), também protegeu e cuidou da criança em sua
debilidade e desamparo, exposta que estava a todos os perigos que a esperavam
no mundo externo; sob a proteção do pai, a criança se sentiu segura.” (FREUD,
1933, p. 159)
Desse modo, assim como Deus-Pai criou
o universo, também o filho atribuiu a sua própria existência e a existência do
mundo ao pai. Quando a criança se torna adulta, o desamparo não desaparece.
Mesmo nessa nova condição, necessita de proteção. No entanto, reconhece que seu
pai não possui os dotes imaginados na sua infância. Por isso, retorna à imagem
mnêmica do pai, a quem supervalorizava na infância. Exalta a imagem,
transformando-a em divindade, e tornando-a contemporânea e real na figura de
Deus-Pai, o qual promete proteção e felicidade. É essa necessidade que sustenta
a crença em Deus. Ademais, assim como o pai educou a criança no sentido de
adaptar-se a determinadas restrições em seus desejos pulsionais mediante um
sistema de recompensas carinhosas ou punições; também encontramos essa relação
na religião, onde a quantidade de proteção e de satisfação destinadas a uma
pessoa depende de seu cumprimento dos preceitos religiosos.
Freud conclui que a “Weltanschauung religiosa
é determinada pela situação de nossa infância” (p. 161) E, embora a religião
com seus milagres, suas doutrinas da origem do universo, suas promessas de
proteção e felicidade, já havia se mostrado indigna de créditos a partir de um
exame crítico pelo espírito científico, a última contribuição “à crítica da “Weltanschauung”
da religião foi feita pela psicanálise, ao mostrar como a religião se originou
a partir do desamparo da criança, e ao atribuir seu conteúdo à sobrevivência,
na idade madura, de desejos e necessidades da infância” (p.163)
Freud aponta que a religião coloca
uma objeção em ser estudada como objeto de investigação, pois a religião é da
ordem do sublime e, portanto, não pode ser medida por critérios humanos. Em
resposta a isso, Freud diz que:
“de modo algum,
está sendo cogitada uma invasão da área da religião pelo espírito científico;
pelo contrário, sim uma invasão, pela religião, na esfera do pensamento
cientifico. Qualquer que seja seu valor e importância, ela não tem o direito,
em nenhum sentido, de limitar o pensamento – não tem o direito, portanto, de se
furtar à eventualidade de o pensamento tentar investigá-la”(p. 166)
Freud prossegue, e nesse momento sua
crítica à religião se aproxima de sua crítica à filosofia e à arte, nas quais o
conhecimento e a verdade são destituídos pela ilusão. O autor explica que o
pensar científico se esforça no sentido de chegar à correspondência com a
realidade, com aquilo que é externo e independente de nós, mas decisivo para a
satisfação ou decepção de nossos desejos. “A essa correspondência com o mundo
externo real chamamos de ‘verdade’” (p.166). Nesse sentido, a religião por ser
benéfica e porque dignifica não deve afirmar poder tomar o lugar da ciência,
pois não trata da verdade. Freud diz que poderia ser posto um fim nesta questão
se a religião declarasse que:
“Realmente não posso dar-lhes o que
comumente é chamado de ‘verdade’; se a querem, apeguem-se a ciência. Mas o que
tenho a oferecer-lhes é algo incomparavelmente mais belo, mais consolador e
mais elevado do que tudo o que podem conseguir da ciência. E, por causa disso
digo-lhes que é verdadeiro, num outro sentido, mais elevado” (p. 167)
No entanto, a religião não faria tal
declaração, pois perderia toda sua influência sobre a massa da humanidade.
Desse modo, os adeptos da Weltanschauung religiosa defendem-se
por meio do ataque. Dizem eles que a religião já teria levado consolo e
salvação pra vida de milhões de pessoas por milhares de anos; enquanto a
ciência admite ser incapaz de proporcionar consolo e alegria. Dizem eles que:
“tudo que ela ensina é provisoriamente
verdadeiro: o que hoje é valorizado como a mais alta sabedoria, amanhã será
rejeitado e substituído por alguma outra coisa, embora esta seja apenas uma
tentativa. O último erro é, então, qualificado como verdade.” (p.168)
Freud responde a essa crítica dizendo
que a ciência ainda é muito nova; uma atividade humana que se desenvolveu
tardiamente. Cita como exemplo que, já havia nascido quando Darwin publicou seu
livro sobre a origem das espécies. No entanto, admite que a marcha da ciência é
lenta e suas respostas, de fato, são provisórias. O autor compara a pesquisa
científica com a análise, que também tem um ritmo lento e está sempre
reformulando as hipóteses, renunciando às convicções precoces, de modo a não
ser levada a negligenciar fatores inesperados. Também defende que há um exagero
nas críticas à ciência; ela não cambaleia, cega, de um experimento a outro. Há
sim, um fundamento que é somente modificado e aperfeiçoado, mas não demolido.
No entanto, ainda que incompleta, a
ciência é indispensável. Ela é capaz de melhoramentos jamais sonhados, ao passo
que a Weltanschauung religiosa não é. “Esta está completa em
todas as suas partes essenciais; se ela foi um erro, assim deve ser, para
sempre” (p.170). Freud diz que não se pode menosprezar que, enquanto a ciência
considera o mundo externo real, a religião é uma ilusão e sua força está nas
nossas pulsões carregadas de desejos.
Freud prossegue com as outras Weltanschauugen que
se opõem à posição científica: a anarquista/niilista e a marxista.
A primeira equivale a um anarquismo
político e embora parta da ciência, suas preconizações a auto-anula.
Segundo a teoria anarquista, a verdade não existe, não há um conhecimento
seguro do mundo real. O homem veria na realidade aquilo que deseja ver, ou
seja, a verdade é uma ilusão. A princípio essa teoria parece superior enquanto
se refere a questões abstratas, mas, segundo Freud, desmorona diante das
questões práticas.
Quanto à segunda, trata-se da Weltanschauung marxista.
Esta declara que o desenvolvimento das formas de sociedade é um processo
histórico natural, que as mudanças na estratificação social surgem umas das
outras segundo um processo dialético e que os fatores econômicos exercem uma
influência determinante sobre as atitudes humanas. Freud refuta tanto o caráter
natural da dialética histórica como a primazia das condições econômicas,
colocando em pauta os fatores psicológicos como: a pulsão de autopreservação, a
agressividade, a necessidade de ser amado, a tendência a procurar obter prazer
e evitar desprazer. Segundo Freud, “é inquestionável que indivíduos, raças e
nações diferentes se conduzem de forma diferente, sob as mesmas condições
econômicas” (p.173). Isso atestaria que os fatores econômicos não são os únicos
no estabelecimento das estruturas nas sociedades, estas não podem ser pensadas
a revelia dos fatores psicológicos, que concorrem para o estabelecimento das
condições econômicas, e por outro lado necessitam delas para se expressar.
No entanto, a crítica mais contundente
de Freud à Weltanschauung marxista refere-se à imposição
marxista de uma proibição do pensamento crítico. Freud diz:
“Embora sendo originalmente uma
parcela da ciência, e construído em sua implementação, sobre a ciência e a
tecnologia, criou uma proibição para o pensamento que é exatamente tão
intolerante como o era a religião, no passado. Qualquer exame crítico do
marxismo está proibido, dúvidas referentes à sua correção são punidas, do mesmo
modo que uma heresia, em outras épocas, era punida pela Igreja Católica. Os
escritos de Marx assumiram o lugar da Bíblia e do Alcorão, como fonte de
revelação, embora não parecessem ser mais isentos de contradições e
obscuridades do que esses antigos livros sagrados” (p. 175).
Além disso, a Weltanschauung marxista
também desenvolve a ilusão, promete um futuro melhor, no qual não há
necessidade insatisfeita. Freud novamente aponta para a influência dos fatores
psicológicos: é impossível prescindir da coerção, é impossível uma convivência
despojada de atritos na ordem da sociedade, é impossível alterar a natureza
humana.
Freud conclui o texto dizendo que a
psicanálise é incapaz de construir Weltanschauung; ela não precisa
de uma Weltanschauung, pois faz parte da ciência e pode aderir
a sua Weltanschauung científica, que tem como traço a submissão à
verdade e a rejeição às ilusões.
Junho/2013 – Elaborado por Anna Miha e
revisado por Manuella Juliani, da Equipe de Monitores de Psicanálise - PUC/SP –
Campus Barueri .
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