sábado, 15 de junho de 2013

“A Questão de uma Weltanschauung” S. Freud – Conferência XXXV – em: Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise, (1933 [1932]), Vol. XXII.

“A Questão de uma Weltanschauung” S. Freud – Conferência XXXV – em: Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise, (1933 [1932]), Vol. XXII.

No alemão corrente, uma Weltanschauung é o que chamamos na língua portuguesa de “visão de mundo”, a qual cada um pode ter a sua e não encerra uma verdade em si. No entanto, Freud dota essa palavra de um significado especial, justificando que é um conceito especificamente alemão de difícil tradução. Em sua opinião,

“a Weltanschauung” é uma construção intelectual que soluciona todos os problemas de nossa existência, uniformemente, com base em uma hipótese superior dominante, a qual, por conseguinte, não deixa nenhuma pergunta sem resposta e na qual tudo o que nos interessa encontra um lugar fixo (FREUD, 1933, p.155).

Freud diz que, sendo a psicanálise uma ciência especializada do ramo da psicologia, ela é incapaz de construir por si mesma uma Weltanschauung, e desse modo, adere a Weltanschauung científica. Esta por sua vez, recebeu a importante contribuição da psicanálise, que estendeu a pesquisa à área mental. Mas, mesmo assim, a Weltanschauung científica, “dificilmente merece um nome tão grandiloquente, pois não é capaz de abranger tudo, é muito incompleta...” (p. 177).

Embora aponte as fragilidades de uma Weltanschauung científica, Freud a defenderá, em oposição a outros campos como: a arte, a filosofia, e principalmente a religião, justificando que a Weltanschauung científica trata de questões da esfera do conhecimento, enquanto as outras da ilusão. Para o autor, a arte é inócua e benéfica e não procura ser mais do que uma ilusão; a filosofia não se opõe à ciência, trabalha inclusive com os mesmos métodos, mas também é uma ilusão na medida em que acredita ser capaz de explicar o universo e aceita como fontes de conhecimento, a intuição; já a religião tem um poder imenso e em períodos anteriores construiu uma Weltanschauung coerente e auto-suficiente num grau sem precedentes e que, embora abalada, persiste na atualidade. Ela é a única capaz de rivalizar como uma Weltanschauung científica, pois oferece aos seres humanos informações a respeito da origem e da existência do universo, assegura-lhes proteção e felicidade nos altos e baixos da vida e dirige seus pensamentos e ações a partir de preceitos impostos com autoridade. Com isso preenche três funções:
·                     Satisfaz a sede de conhecimento do homem;
·                     Acalma o medo que o homem sente em relação aos perigos e vicissitudes da vida;
·                     Estabelece preceitos, proibições e restrições.

Freud faz uma comparação das funções que a religião preenche com as experiências infantis. Lembrando que o Deus-criador é abertamente chamado de ‘pai,’ diz que:
“A mesma pessoa, à qual a criança deveu sua existência, o pai (ou, mais corretamente, sem dúvida, a instância parental composto do pai e da mãe), também protegeu e cuidou da criança em sua debilidade e desamparo, exposta que estava a todos os perigos que a esperavam no mundo externo; sob a proteção do pai, a criança se sentiu segura.” (FREUD, 1933, p. 159)
Desse modo, assim como Deus-Pai criou o universo, também o filho atribuiu a sua própria existência e a existência do mundo ao pai. Quando a criança se torna adulta, o desamparo não desaparece. Mesmo nessa nova condição, necessita de proteção. No entanto, reconhece que seu pai não possui os dotes imaginados na sua infância. Por isso, retorna à imagem mnêmica do pai, a quem supervalorizava na infância. Exalta a imagem, transformando-a em divindade, e tornando-a contemporânea e real na figura de Deus-Pai, o qual promete proteção e felicidade. É essa necessidade que sustenta a crença em Deus. Ademais, assim como o pai educou a criança no sentido de adaptar-se a determinadas restrições em seus desejos pulsionais mediante um sistema de recompensas carinhosas ou punições; também encontramos essa relação na religião, onde a quantidade de proteção e de satisfação destinadas a uma pessoa depende de seu cumprimento dos preceitos religiosos.
Freud conclui que a “Weltanschauung religiosa é determinada pela situação de nossa infância” (p. 161) E, embora a religião com seus milagres, suas doutrinas da origem do universo, suas promessas de proteção e felicidade, já havia se mostrado indigna de créditos a partir de um exame crítico pelo espírito científico, a última contribuição “à crítica da “Weltanschauung” da religião foi feita pela psicanálise, ao mostrar como a religião se originou a partir do desamparo da criança, e ao atribuir seu conteúdo à sobrevivência, na idade madura, de desejos e necessidades da infância” (p.163)
Freud aponta que a religião coloca uma objeção em ser estudada como objeto de investigação, pois a religião é da ordem do sublime e, portanto, não pode ser medida por critérios humanos. Em resposta a isso, Freud diz que:
“de modo algum, está sendo cogitada uma invasão da área da religião pelo espírito científico; pelo contrário, sim uma invasão, pela religião, na esfera do pensamento cientifico. Qualquer que seja seu valor e importância, ela não tem o direito, em nenhum sentido, de limitar o pensamento – não tem o direito, portanto, de se furtar à eventualidade de o pensamento tentar investigá-la”(p. 166)
Freud prossegue, e nesse momento sua crítica à religião se aproxima de sua crítica à filosofia e à arte, nas quais o conhecimento e a verdade são destituídos pela ilusão. O autor explica que o pensar científico se esforça no sentido de chegar à correspondência com a realidade, com aquilo que é externo e independente de nós, mas decisivo para a satisfação ou decepção de nossos desejos. “A essa correspondência com o mundo externo real chamamos de ‘verdade’” (p.166). Nesse sentido, a religião por ser benéfica e porque dignifica não deve afirmar poder tomar o lugar da ciência, pois não trata da verdade. Freud diz que poderia ser posto um fim nesta questão se a religião declarasse que:
“Realmente não posso dar-lhes o que comumente é chamado de ‘verdade’; se a querem, apeguem-se a ciência. Mas o que tenho a oferecer-lhes é algo incomparavelmente mais belo, mais consolador e mais elevado do que tudo o que podem conseguir da ciência. E, por causa disso digo-lhes que é verdadeiro, num outro sentido, mais elevado” (p. 167)
No entanto, a religião não faria tal declaração, pois perderia toda sua influência sobre a massa da humanidade. Desse modo, os adeptos da Weltanschauung religiosa defendem-se por meio do ataque. Dizem eles que a religião já teria levado consolo e salvação pra vida de milhões de pessoas por milhares de anos; enquanto a ciência admite ser incapaz de proporcionar consolo e alegria. Dizem eles que:
tudo que ela ensina é provisoriamente verdadeiro: o que hoje é valorizado como a mais alta sabedoria, amanhã será rejeitado e substituído por alguma outra coisa, embora esta seja apenas uma tentativa. O último erro é, então, qualificado como verdade.” (p.168)
Freud responde a essa crítica dizendo que a ciência ainda é muito nova; uma atividade humana que se desenvolveu tardiamente. Cita como exemplo que, já havia nascido quando Darwin publicou seu livro sobre a origem das espécies. No entanto, admite que a marcha da ciência é lenta e suas respostas, de fato, são provisórias. O autor compara a pesquisa científica com a análise, que também tem um ritmo lento e está sempre reformulando as hipóteses, renunciando às convicções precoces, de modo a não ser levada a negligenciar fatores inesperados. Também defende que há um exagero nas críticas à ciência; ela não cambaleia, cega, de um experimento a outro. Há sim, um fundamento que é somente modificado e aperfeiçoado, mas não demolido.
No entanto, ainda que incompleta, a ciência é indispensável. Ela é capaz de melhoramentos jamais sonhados, ao passo que a Weltanschauung religiosa não é. “Esta está completa em todas as suas partes essenciais; se ela foi um erro, assim deve ser, para sempre” (p.170). Freud diz que não se pode menosprezar que, enquanto a ciência considera o mundo externo real, a religião é uma ilusão e sua força está nas nossas pulsões carregadas de desejos.
Freud prossegue com as outras Weltanschauugen que se opõem à posição científica: a anarquista/niilista e a marxista.
A primeira equivale a um anarquismo político e embora parta da ciência, suas preconizações a auto-anula.  Segundo a teoria anarquista, a verdade não existe, não há um conhecimento seguro do mundo real. O homem veria na realidade aquilo que deseja ver, ou seja, a verdade é uma ilusão. A princípio essa teoria parece superior enquanto se refere a questões abstratas, mas, segundo Freud, desmorona diante das questões práticas.
Quanto à segunda, trata-se da Weltanschauung marxista. Esta declara que o desenvolvimento das formas de sociedade é um processo histórico natural, que as mudanças na estratificação social surgem umas das outras segundo um processo dialético e que os fatores econômicos exercem uma influência determinante sobre as atitudes humanas. Freud refuta tanto o caráter natural da dialética histórica como a primazia das condições econômicas, colocando em pauta os fatores psicológicos como: a pulsão de autopreservação, a agressividade, a necessidade de ser amado, a tendência a procurar obter prazer e evitar desprazer. Segundo Freud, “é inquestionável que indivíduos, raças e nações diferentes se conduzem de forma diferente, sob as mesmas condições econômicas” (p.173). Isso atestaria que os fatores econômicos não são os únicos no estabelecimento das estruturas nas sociedades, estas não podem ser pensadas a revelia dos fatores psicológicos, que concorrem para o estabelecimento das condições econômicas, e por outro lado necessitam delas para se expressar.
No entanto, a crítica mais contundente de Freud à Weltanschauung marxista refere-se à imposição marxista de uma proibição do pensamento crítico. Freud diz:
“Embora sendo originalmente uma parcela da ciência, e construído em sua implementação, sobre a ciência e a tecnologia, criou uma proibição para o pensamento que é exatamente tão intolerante como o era a religião, no passado. Qualquer exame crítico do marxismo está proibido, dúvidas referentes à sua correção são punidas, do mesmo modo que uma heresia, em outras épocas, era punida pela Igreja Católica. Os escritos de Marx assumiram o lugar da Bíblia e do Alcorãocomo fonte de revelação, embora não parecessem ser mais isentos de contradições e obscuridades do que esses antigos livros sagrados” (p. 175).
Além disso, a Weltanschauung marxista também desenvolve a ilusão, promete um futuro melhor, no qual não há necessidade insatisfeita. Freud novamente aponta para a influência dos fatores psicológicos: é impossível prescindir da coerção, é impossível uma convivência despojada de atritos na ordem da sociedade, é impossível alterar a natureza humana.
Freud conclui o texto dizendo que a psicanálise é incapaz de construir Weltanschauung; ela não precisa de uma Weltanschauung, pois faz parte da ciência e pode aderir a sua Weltanschauung científica, que tem como traço a submissão à verdade e a rejeição às ilusões.


Junho/2013 – Elaborado por Anna Miha e revisado por Manuella Juliani, da Equipe de Monitores de Psicanálise - PUC/SP – Campus Barueri .


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